Nosso impacto na Amazônia é ainda maior do que o imaginado
Thiago Medaglia
Estudo inédito publicado no principal periódico científico do mundo alerta para os danos causados por atividades humanas em remanescentes florestais
A partir de hoje, o fato é científico: em se tratando de florestas tropicais, o desmatamento não é o único vilão.
Em todo o mundo, as políticas públicas de conservação de biomas como o amazônico focam no combate ao corte raso, prática que elimina toda vegetação existente em uma área. No entanto, esforços para conservar espécies tropicais não terão sucesso se não levarem em consideração o controle das perturbações mais comuns causadas pelo homem: a exploração madeireira, os incêndios florestais, a fragmentação de áreas remanescentes e a caça. Esta conclusão está em um estudo publicado na última edição do periódico Nature.
O artigo ‘Anthropogenic disturbance can be as important as deforestation in driving tropical biodiversity loss’ ('Perturbação antropogênica pode ser tão importante quanto o desmatamento na condução de perda de biodiversidade tropical'), mediu o impacto geral das perturbações florestais mais comuns em 1.538 espécies de árvores, 460 de aves e 156 de besouros encontrados no Pará.
Pela primeira vez, pesquisadores de 18 instituições internacionais, dentre as quais 11 brasileiras, foram capazes de comparar a perda de espécies causada por perturbações à floresta com aquelas resultantes da perda de habitat pelo corte raso. Os cientistas demonstraram que, para a floresta tropical, a perda de biodiversidade pode chegar a ser igual nos dois casos, seja degradação ou desmatamento. Desta forma, o trabalho conseguiu definir um parâmetro de avaliação da saúde das florestas tropicais degradadas. É uma boa notícia diante de um cenário ruim.
Fruto da Rede Amazônia Sustentável (RAS), um consórcio de instituições brasileiras e estrangeiras, coordenado pela Embrapa Amazônia Oriental, Museu Paraense Emílio Goeldi, Universidade de Lancaster e Instituto Ambiental de Estocolmo (Suécia), o estudo ainda demonstra que, em áreas degradas, a perda de biodiversidade na Amazônia paraense é equivalente ao desmatamento de um período de dez anos.
A vida na floresta
Falar em saúde da floresta não deixa de ser retórica. É uma maneira, bastante humana, porém, pouco humanizada, de se referir às formas de vida encontradas na Amazônia. A própria lógica das políticas públicas voltadas à conservação ignora as nuances não captadas pelos satélites que monitoram o desmatamento na Região Norte: sob as copas das árvores restantes nas zonas degradadas, os impactos reais à biodiversidade passam despercebidos. Melhor dizendo, passavam.
Quem já presenciou o cair da noite no interior das porções mais remotas da maior floresta tropical do mundo, jamais há de esquecer a experiência sensorial única. Antes mesmo de a escuridão profunda tomar o céu e o rio, a mata grita. É uma sinfonia nada discreta de chamados vindos dos mais variados reinos, gêneros e espécies: sem a mínima organização, gritam os macacos-bugio, cantam as cigarras, cricrilam os grilos, coaxam os sapos; sopra o vento, corre a água, rompem-se os galhos. As noites na floresta, como escreveu Euclides da Cunha, são “fantasticamente ruidosas”, capazes de imprimir na alma do ser da cidade uma certeza indissolúvel: o planeta é vivo.
É este o som da chamada biodiversidade. É esta a vida que se esvai quando a floresta tropical é atingida pela ação do homem. Agora, no entanto, não é mais possível alegar desconhecimento: neste mesmo estudo, os pesquisadores revelam que espécies sob o risco máximo de extinção são as mais atingidas pelas tais perturbações. “O estado do Pará abriga 10% das espécies de aves do planeta, muitas das quais endêmicas”, relata Ima Vieira, pesquisadora titular do Museu Paraense Emilio Goeldi, e uma das colaboradoras do projeto. “Nossos estudos demonstram que justamente elas sofrem o maior impacto da ação antrópica, pois não sobrevivem em ambientes com estes níveis de perturbação.”
Mas o preço é alto para todos os envolvidos. Quanto menor a saúde da floresta, maior sua incapacidade de prestar os serviços ecossistêmicos que ajudam a manter a vida no planeta – a nossa, inclusive. Serviços ecossistêmicos? Estamos falando, entre outros, do sequestro e do armazenamento do carbono (atuantes na regulação do clima), da oferta de água, do controle da erosão.
A diferença entre corte raso e corte seletivo
Para entender melhor a relevância do estudo, vale a pena retomar o caso de Paragominas, no Nordeste do Pará.
Em meados dos anos 1990, Paragominas era uma cidade decadente. A área urbana inspirava abandono e visitantes eram vistos com desconfiança. Na zona rural, marcada pelo desmatamento ilegal, eram frequentes assassinatos e ameaças, disputas por posse da terra e trabalho escravo – não por acaso, o lugar recebeu o apelido de “Paragobalas”. Durante o período de seca, de tão constantes os incêndios, ficava difícil até respirar. Os olhos ardiam e a nuvem de fumaça criava problemas para os pilotos de avião. Fora este o resultado da intensa exploração da madeira na década anterior (1980), quando Paragominas havia sido o principal polo madeireiro dos trópicos e concentrava o maior número de serrarias do planeta.
Muito dinheiro circulava. Baseada na exploração predatória de madeira, a atividade econômica promoveu rápido crescimento, em um modelo reproduzido em muitos municípios da região. A floresta pagou o pato. Quase 9 mil quilômetros quadrados de mata foram perdidos, sendo a maior parte transformada em pasto. Ainda assim, com 20 mil quilômetros quadrados de área – pouco menor que Sergipe –, o município conta com um remanescente florestal considerável: em torno de 66% de seu território. É uma grande extensão de floresta, mas não de vida.
Hoje, Paragominas é modelo de desenvolvimento sustentável para os municípios da Amazônia e, coincidência ou não, foi, ao lado de Santarém, palco da pesquisa científica que pode resultar em um novo paradigma das políticas públicas de conservação de florestas tropicais. “Estes resultados devem servir de alerta para a comunidade global”, afirma Jos Barlow, da Universidade de Lancaster (Reino Unido), o principal autor do estudo. “O Brasil demonstrou uma liderança sem precedentes no combate ao desmatamento na última década. O mesmo nível de liderança é necessário agora para proteger a saúde das florestas restantes nos trópicos. Do contrário, décadas de esforço de conservação terão sido em vão”.
“A fim de restaurar a saúde de áreas remanescentes'', destaca Toby Gardner, coautor do estudo e pesquisador do Instituto Ambiental de Estocolmo (Suécia), “é preciso evitar perturbações adicionais, cessando a exploração madeireira e prevenindo incêndios”. Se realmente degradada, a reabilitação é necessária e pode incluir plantios de enriquecimento para ajudar na recuperação de espécies de sucessão tardia”.
Em volume cada vez maior, a Amazônia continua a receber projetos agropecuários e de infraestrutura capazes de impactar a paisagem regional e ameaçar a biodiversidade. Sem a devida revisão das atuais estratégias, capazes, também, de silenciar os habitantes da floresta, de dar cabo da própria vida.
Veja também – Mapa das áreas protegidas e terras indígenas da Amazônia