O homem que quer levar a medicina indígena para todo o mundo
Gustavo Faleiros
Por Gustavo Faleiros, de Manaus
João Paulo Barreto tem uma fala mansa e, sob um bigode ralo, sempre um sorriso. A conversa, entretanto, é bastante direta: ele responde às perguntas mantendo os olhos nos olhos. A frase favorita deste Tukano de 45 anos parece ser “vamos falar de igual para igual”.
Doutorando em antropologia pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM), João Paulo é um dos mais sonoros porta-vozes da medicina e dos conhecimentos indígenas. Sob sua coordenação, alguns kumuãs (pajés) de povos Tukano e Tuyuka passaram a atender pacientes (índios ou não) em pleno centro histórico de Manaus.
O Bahserikowi'i – Centro de Medicina Indígena da Amazônia foi inaugurado na última terça-feira, 6 de junho, na Rua Bernardo Ramos, em uma casa da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira. Já nos primeiros dias, surpreendeu o número de pessoas que buscaram consultas com o Kumu Manoel Lima, da etnia Tuyuka.
Paulinho, como é conhecido, enfatiza que, por ali, ninguém vai encontrar os clichês. “Nós não vamos te receber pintados ou de cocar. O que estamos mostrando é o nosso conhecimento.” Tampouco trata-se de um resgate cultural ou uma volta aos valores tradicionais, já que “o conhecimento” não se perdeu: ele sempre foi exercido, garante o coordenador.
Os procedimentos de cura são os bahsese, que, segundo o Tukano, encontra uma tradução, ainda que pouco precisa, na palavra benzimento. “Vocês estão falando de ciência, nós de conhecimento”, explica Paulinho.
Nesta entrevista, realizada na última sexta-feira, dia 9, João Paulo Barreto conta como surgiu a ideia de criar o Bahserikowi'i. O coordenador também critica os pesquisadores que buscam registrar as práticas, o que seria uma forma de “cristalizar” os indígenas e “congelar” um conhecimento que está sempre em evolução.
InfoAmazonia – Como surgiu esta ideia de começar o centro de medicina indígena?
João Paulo Barreto – Esta ideia surge de todo o processo de luta dos indígenas. Mas neste processo ocorreram alguns fatos concretos comigo e com a minha família que colocaram outros desafios. O primeiro fato foi uma picada de cobra levada por minha sobrinha na nossa aldeia, Santo Domingos, no rio Tiquié, Alto Rio Negro. Quando ela chegou ao hospital após quatro dias, disseram que a região da picada já estava necrosada. Eles começaram a remover a pele necrosada e depois decidiram amputar a perna. Nós inicialmente fizemos uma proposta: não era preciso amputar porque os kumuã, meu pai, meus tios, diziam que aquilo não era um necrose, que era uma reação entre o veneno da jararaca e o sangue, o que causava aquela coloração. Só que a equipe médica do hospital não tinha disposição de ouvir. Sempre colocava meu pai como uma pessoa que não estudou, que não conhece.
Isso deu uma confusão, porque nós queríamos fazer tratamento conjunto, tanto da medicina como dos conhecimentos. Mas o médico chegou ao extremo de dizer que ele tinha estudado oito anos para poder decidir o futuro da neta de meu pai. Naquele momento eu fiquei com muita raiva, desapontado, angustiado. Mas depois peguei aquilo como motivação. Isso me motivou a mostrar o nosso conhecimento. Eu percebi que os médicos e a ciência não acreditam nos indígenas. Quando meu pai fala com um médico, ele é simplesmente ignorado. Há uma assimetria no diálogo: eles olham e pensam: ‘este aí está falando besteira’. Mas a lógica do meu pai e dos meus tios também não é a do médico. Então, não se senta para dialogar. Foi esta questão que também me motivou para entrar na universidade. O estudo era o caminho para chegar a este diálogo. Hoje eu estou fazendo doutorado. Então a conversa não é mais com o Tukano, a liderança. É doutor com doutor.
Eu percebi que os médicos, a ciência não acreditam nos indígenas. Quando meu pai fala com um médico, ele é simplesmente ignorado
Qual foi e é o foco dos seus estudos?
JPB – Inicialmente eu fiz Filosofia, num momento em que ainda não existiam as cotas na UFAM. Terminei a filosofia e comecei um mestrado em Direito, mas parei porque fui fisgado pela Antropologia. Não foi uma opção profissional, eu não queria ser antropólogo. Eu achava que era um caminho para este diálogo. Eu queria entender o pensamento não-indígena, eu queria estudar os brancos. Só que, no meio do caminho, eu me dei conta que este meu conhecimento Tukano não me dá suporte teórico para debater. Então, tive que abandonar esta ideia de estudar os brancos e voltar para minha cultura, pesquisar como estão organizados os conceitos, o sistema lógico. E hoje tenho esta publicação, que é lida por vários colegas, minha dissertação de mestrado: “Wai-Mahsã: Peixes e Humanos” [3,2 MB; pdf].
Com isso, também fui conseguindo convencer alguns professores de que eles deveriam deslocar este conceito, que se trata de xamanismo, magia, religião para uma outra lógica, a nossa lógica. Os professores do Núcleo de Estudos da Amazônia Indígena da UFAM começaram a entender isso, a entender na minha proposta.O debate foi crescendo em torno do conhecimento e não mais da mitologia.
Ao mesmo tempo, por outro lado, havia o desafio com meu pai. Porque, para esta pesquisa, meu interlocutor foi meu pai. Ele e os meus tios já haviam sido informantes de muitos pesquisadores, antropólogos formados, doutores. Como ele já tinha essa experiência de ser informante, me dizia ‘que bom você vai ser doutor, mas e eu? Eu que já ajudei a formar muitos antropólogos, o que ficou para mim?’ Foi aí que eu comecei a dialogar com ele sobre esta possibilidade de criar um centro de medicina indígena.
No princípio, eu tinha pensado em criar lá na minha aldeia. Mas, depois de analisar, a gente percebeu que ficaria muito local, que não teria muita repercussão. Depois, a gente pensou em São Gabriel [da Cachoeira, município no Alto Rio Negro], mas também sentimos que não teria impacto porque ali já tem muitos especialistas. Até que percebemos que aqui teria atenção, teria repercussão na mídia. A questão não é só atender, é provocar uma discussão.
Fui conseguindo convencer alguns professores de que eles deveriam deslocar este conceito, que se trata de xamanismo, magia, religião para uma outra lógica, a nossa lógica
Além do atendimento, como vocês pretendem fazer essa provocação? Que tipo de atividades vão ocorrer neste espaço?
JPB – Aqui neste espaço vão funcionar três grandes programas e um deles é justamente este atendimento. Um atendimento que é tratamento mesmo: não é ficar dando receita para a pessoa ir se tratar em casa. Aqui, se você está doente, você vem se tratar, não buscar receita. Outro programa é o de cursos de línguas indígenas. Tukano, Baniwá, Tikuna, Sateré… Vamos criar cursos para isso. Teremos curso de cosmologia indígena – porque, para entender o conhecimento, você tem que entender a cosmologia em que estão fundamentadas estas práticas. Vai ter também oficinas, de gastronomia, de artesanato… E o outro programa vai ser focado nas atividades econômicas, como o artesanato, que vamos priorizar comprar dos artesãos diretamente na aldeia e não via associação ou outras organizações.
O que significa exatamente o nome do centro?
JPB – Bahserikowi'i é o espaço onde se constrói o tratamento, é a fonte do tratamento. Seria o conjunto destas fórmulas, dos bahseses.
O Museu da Amazônia tem uma grande exposição permanente sobre as espécies de fauna e flora e os mitos da região do Alto Rio Negro, em especial o rio Tiquié. Como o sua pesquisa contrapõe ou complementa aquela pesquisa?
JPB- O que os pesquisadores produzem é uma coisa desconexa da nossa lógica. Pega uma partezinha e vão tentando entender. Vão mutilando o conhecimento – isso é uma mutilação de conhecimento. O que está exposto lá não é diferente do que está sendo feito aqui, mas ali aparece uma partezinha, para o gringo ver. Mas, do ponto de vista nosso, dos especialistas, dos kumuã, isso é uma brincadeira. ‘Ah, índio pensa assim, é? Esse é o desenho do índio?’ [tom irônico]. Isso acaba criando um conceito distorcido sobre o nosso conhecimento. Não precisa de exposição. Nós já somos vivos, não estamos congelados. Meu pai falava isso: quando transcreve bahsese, vai se cristalizando, vai matando. Ela é dinâmica, ela é a gente, ela é viva, ela que move e quando você coloca no papel, você matou.
Outra coisa é que este material produzido não está no domínio dos povos indígenas. Você já viu algum pesquisador indígena trabalhando no museu? Você já viu algum indígena chefiar um museu indígena? Eles são os faxineiros, os intérpretes… Nós somos tratados assim, estes intelectuais nos olham assim… Por isso que criam estes conceitos: etno-botânica, etno-educação, etno-matemática, etno-história. Ou seja, é uma tentativa de chapar o conhecimento na Ciência, até para se dizer que os indígenas dependem deles. Isso é desqualificar nosso conhecimento. Nossa luta é essa trazer nosso conhecimento à tona.
A luta então é para manter a cultura de vocês?
JPB- Manter a cultura é uma expressão muito surrada. Nosso conhecimento estava em espera por conta das coisas que foram impostas. Então pode-se dizer que estamos reconectando. Nós apenas queremos ser, com nossas práticas, nossa epistemologia. Quando um kumu, como meu tio, está fazendo um bahsese, ele apenas está dizendo: ‘Eu sou’.