Na Colômbia, petróleo chegou na região antes dominada pelas FARC
Gustavo Faleiros
Esta reportagem foi originalmente editada no site da Agência Pública. Ela relata a viagem da equipe do InfoAmazonia em outubro para a Amazônia colombiana para conhecer as mudanças pelas quais passa a região no momento em que o governo do país negocia a paz com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, as FARC
Don Luiz Eduardo Godoy Sanchez, o “Doctor” ou simplesmente “Doc”, fala efusivamente, chacoalha os braços no ar e engrossa a voz para contar sobre os dias em que a cúpula das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, as FARC, e o presidente Andrés Pastrana transformaram a vila de Los Pozos no epicentro político do país. Tudo se passou entre novembro de 1999 e fevereiro de 2002, quando o governo colombiano aceitou dialogar com a guerrilha e passou a negociar um cessar fogo ao conflito que já se arrastava por meio século. Porém, a busca pela paz fracassou. Anos depois, em 2014, o atual presidente colombiano Juan Manuel Santos retomou o esforço.
Enquanto escutamos ao Doc, emissários do governo e da guerrilha se preparavam para mais uma rodada de negociações. Desde o ano passado diversas reuniões foram realizadas em Havana, Cuba com intento de chegar a um cessar fogo entre a guerrilha e Exército em 2015.
Estamos no Centro Educativo Los Pozos, no pátio vazio, amplo e aberto como o de muitas escolas rurais na Amazônia. Murais pintados pelos alunos exibem mensagens como “Paz”, “Tolerância”, “Respeito”. Há um campinho de futebol e pequenas casas de muros verdes aos poucos são carcomidas por um matagal. “Ali era onde os líderes das FARC se reuniam antes da chegada dos homens do governo” conta o médico veterinário, apontando as taperas.
A poucos quilômetros se veem os tanques de armazenamento e exploração da Emerald, petroleira britânica comprada há pouco pela estatal chinesa Sinochen. Los Pozos – em português, “os poços” –não nega o nome: suas poucas casas e moradores foram atraídos pelas promessas da indústria do petróleo. A Shell foi a primeira a chegar ali em 1917 e desde então as tentativas de tirar o ouro negro não pararam. Mas foi apenas em 2010 que a extração de fato começou.
No surrado Suzuki Vitara vermelho do Doc havíamos cruzado, sem ser parados, vários bloqueios militares formados por jovens soldados portando fuzis, camuflados entre as árvores ou sentados em barricadas frente a metralhadoras apontadas para o céu, ociosas. Percorremos 28 km em uma estrada de terra a partir de San Vicente del Caguán, cidade do departamento amazônico de Caquetá, no sudoeste do país.
A pequena San Vicente, às margens do rios Caguán e Yari, é conhecida em toda Colômbia por ser uma das quatro cidades que fizeram parte da “zona de despeje”, ou a região autônoma das FARC. Entre 1998 e 2002, o presidente Pastrana, em preparação ao que imaginava ser o caminho da paz, fez o inesperado: reconheceu as FARC como organização política e declarou partes do território “zona de distensão”, onde o Exército colombiano deixava de atuar e perseguir guerrilheiros.
Fomos a San Vicente e a Loz Pozos para ver os locais que foram palco deste período importante da história da Colômbia. Mas no desolado Centro Educativo Los Pozos não havia, com exceção das pinturas infantis, qualquer referência ao passado. Ali eu esperava pelo menos encontrar uma placa ou monumento, talvez algo como “Aqui ocorreram as mesas de negociação pela paz entre guerrilheiros e o governo” Por outro lado, não seria surpreendente ler algo como “Aqui as FARC deixaram Pastrana plantado, esperando com cara de taxo”.
A cadeira vazia
O que ocorreu em Los Pozos os colombianos consideram um fracasso retumbante. A representação maior do colapso das negociações de paz em 2001 , que era a segunda e mais importante na história do país, é uma foto do presidente neste mesmo pátio escolar, sentado sozinho em uma mesa enfeitada com bandeiras da Colômbia e ladeado por uma cadeira desocupada. Tirofijo, apelido de Manuel Marulanda, o então líder máximo das FARC, não apareceu naquele dia e em nenhum outro dia. Era o fim das esperanças de um acordo de paz, depois de dois anos de negociações.
O episódio deu origem a uma conhecida expressão colombiana : “la silla vacía” ou a cadeira vazia, que batiza inclusive um dos sites de jornalismo investigativo mais conhecidos e influentes do país, parceiro da Agência Pública. Assim a cadeira de plástico branco, dessas que se colocam na beira de uma piscina ou em uma festa de jardim, se tornou o símbolo do impasse político que ainda hoje vive a Colômbia: 60 anos de conflito entre guerrilhas de esquerda, Exército e grupos paramilitares de direita.
O pesquisador Harvey F Kline, em um seu livro “Crônicas de um fracasso anunciado” (Chronicles of a Failure Foretold, University of Alabama Press), argumenta que o processo de paz lançado por Pastrana em 1999 foi uma manobra mal arquitetada. Naquele momento nenhum dos lados envolvidos de fato estava convencido, ou mesmo interessado, em chegar à paz. Nos dois anos em que duraram as negociações, diversos atentados promovidos por células guerrilheiras e pelos paramilitares interromperam as conversas, até que foram abandonadas por completo em 2001. O fim da zona de distensão em 2002 foi a pedra final no processo.
“Nós acreditávamos que era a paz, mas de paz não havia nada. Pastrana nos estava enganando. E nos enganou por quê? Porque queria matar a todos, acabar com as FARC depois de conhecer toda a organização armada e política”, analisa o Doc.
Ex-proprietário de uma farmácia veterinária, o doutor agora é o presidente do Comitê Municipal de Pecuaristas de San Vicente del Caguán. Ele é um homem baixo com uma barriga saliente. A cara suarenta ele seca no poncho, um pano de algodão com franjas amarelas, azuis e vermelhas – as cores da Colômbia – que os homens nesta região levam sobre os ombros. Avançado em sua sexta década de vida, seus cabelos grisalhos provam que viveu os momentos mais críticos da guerrilha na região. “Após o fim das negociações de paz, vieram os assassinatos mais cruéis. Eu mesmo sei porque tive que tirar meu sócio esquartejado de dentro de um rio.”
Como líder dos pecuaristas, seu alinhamento político parece improvável. Fala sem titubear que havia vantagens sob o comando das FARC. Segundo ele, não se roubava gado e não se podia desmatar, além de outros benefícios morais da presença guerrilheira. “Nunca vi nenhum deles beber ou fumar”, garante. Este entusiasmo lhe rendeu o apelido de “veterinário da guerrilha”, algo que claramente não o agrada. “Eu processo quem me chama assim. Nunca fiz nenhum serviço para as FARC”.
A relação com o grupo marxista é um tema vivo entre os habitantes de San Vicente. A cidade foi o centro da ocupação das FARC e sua história recente coincide com os fatos mais marcantes da própria história da Colômbia. Se na vila de Los Pozos se criou a “silla vacía” durante as negociações de paz, foi em San Vicente, retornando de uma visita de campanha, no dia 23 de fevereiro de 2002, que a candidata à presidência Ingrid Betancourt foi sequestrada por guerrilheiros. Com eles, permaneceu prisioneira pelos próximo seis anos e meio, configurando um dos episódios mais amargos de décadas de conflito.
Agora, a zona negra
Chegamos a San Vicente em um sábado de manhã. Tudo parecia típico de um fim de semana de uma cidade do interior: um dia de compras, festas e feiras. O centro estava abarrotado de homens usando chapéus de cowboy pelas praças e bares. As lojas de roupa tocavam música alta e os locutores com voz de radialista anunciavam promoções . Em alguns momentos, o trânsito de caminhões, carros e muitas motocicletas travava as ruas por completo.
Apesar da aparente normalidade, logo na praça central, em torno dos prédios administrativos, havia barricadas e soldados paramentados, preparados para a batalha.
Com 62 mil habitantes, San Vicente vive o que chamam seus habitantes de “o estigma” da zona de distensão. Alguns como o Doc parecem saudosos daquele tempo, mas outros lembram dos “impostos” cobrados pelas FARC e ficam ultrajados com qualquer menção de que a cidade possa ainda apoiar aos guerrilheiros ou camponeses trabalharem para a indústria da cocaína.
A própria presença do Exército demonstra que a tensão continua. Em uma barreira militar bem na entrada da cidade, faixas enormes com as cores da bandeira comunicam em letras garrafais “Guerrilheiro, volte a viver, desmobilize-se”. Um homem fantasiado de Mickey, como os que animam festas de crianças, distribuía folhetos pedindo aos moradores para não dar dinheiro à guerrilha.
De fato, a guerra não terminou. No momento em que visitávamos as cidades do departamento de Caquetá, o governo do presidente Juan Manuel Santos preparava uma nova rodada de negociações em Havana, Cuba. No entanto, no último dia 14 de novembro, as conversas foram congeladas. A razão? Guerrilheiros teriam rompido o compromisso de não realizar mais sequestros. Um general foi raptado em Chocó, norte do país.
O enfraquecimento das FARC causado pela repressão capitaneada na primeira década dos anos 2000 pelo então presidente Álvaro Uribe, criou uma sensação de paz ou ao menos estabilidade econômica em Caquetá. Além da militarização definitiva, a estratégia de Uribe para debilitar as FARC foi acabar com o plantio de coca, uma das principais fontes de recursos financeiros da guerrilha. Nos últimos anos, milhares de camponeses que haviam sido expulsos de suas terras em meio ao conflito retornaram. Atualmente, o departamento possui a maior taxa de desmatamento em toda a Amazônia colombiana, enquanto a agricultura e a pecuária voltaram a crescer.
Mapa do desmatamento
Paradoxalmente, com a paz mais próxima, a disputa por uso da terra e outros recursos naturais se tornou tema central na Colômbia. Tanto no governo de Uribe como no de Santos foram aceleradas as concessões e licenças para mineração e exploração de petróleo. De acordo com o Atlas Amazônia sob Pressão, da Rede Amazônica de Informação Socioambiental Georeferenciada (RAISG), a Colômbia é o segundo país na América do Sul com maior extensão de lotes petroleiros na Amazônia, atrás apenas do Peru. São 193.4 mil Km2, o que representa 40% de toda a zona de floresta tropical no país. Apenas uma pequena parte – 23,4 mil Km2 – está de fato em exploração, mas é o potencial da abertura de novos poços que gera controvérsias.
Atualmente existem na Colômbia 418 campos de exploração de petróleo e a média de extração é de 987 mil barris diários, a melhor cifra em 15 anos, mas ainda assim baixa para o potencial. A meta estabelecida pelo governo Santos é manter uma produção acima de 1 milhão de barris por dia. Mas, contando apenas com as reservas já descobertas, o ritmo atual de produção fará com que o petróleo colombiano termine em pouco mais de seis anos. Por isso a corrida para descobrir novos campos petroleiros na Amazônia.
A gestão do presidente Santos assinou em setembro de 2014 um decreto que cria as “licenças express”, um conjunto de condições que permite ao órgão ambiental aprovar empreendimentos em 90 dias. Especialistas e a oposição criticaram duramente a decisão, pois afirmam que não existe técnicos e recursos financeiros suficientes na ANLA, o equivalente ao Ibama no Brasil, para garantir análises rigorosas em um prazo tão curto. Surpreendentemente, uma das atividades que foi liberada de licenciamento ambiental foram as sísmicas para prospecção de petróleo. A sísmica é um processo de gerar vibrações debaixo da terra cujos reflexos podem indicar a presença de reservatórios subterrâneos.
Em Caquetá, os movimentos sociais da região, representados pela União de Organização Indígenas e Campesinos de San Vicente del Caguán (UNIOS) se posicionou terminantemente contra novos poços de petróleo. No momento, a Emerald Energy é a única empresa retirando petróleo, mas a estatal EcoPetrol firmou em 2013 um acordo para obter 50% dos contratos na região e acelerar a prospecção para abrir novas zonas de produção.
Anibal Morante Rincón, tesoureiro do Comitê Municipal de Pecuaristas, entidade que participa da UNIOS, afirma que a principal preocupação se refere aos impactos sobre as fontes de água. A prospecção poderia afetar nascentes que alimentam o rio Caguán. “Aqui vivemos de produção de gado e existe um potencial turístico. Nada disso será possível se não houver água”, diz. Orgulhoso, conta que Caquetá se tornou o principal polo leiteiro da Colômbia. “Semanalmente saem daqui 450 toneladas de queijo para todo o país.”
Os novos blocos em prospecção – Nogal e Manzano – estão localizados em um ecossistema amazônico conhecido como piedemonte, uma zona florestada que por estar já próxima às elevações dos Andes não é tão densa, mas se torna a fonte de água para as principais cidades de Caquetá. A empresa que trabalha junto à Emerald pretende prospectar um território de 70 mil hectares, usando explosivos em até 2 km de profundidade e gerando um risco de contaminação ou assoreamento.
Ángel Medina, presidente da UNIOS, reforça o argumento de que atrair a indústria do petróleo vai contra a vocação rural da economia de San Vicente . “Para nós, os dirigentes sociais, há muita incerteza. Enquanto em Havana se fala sobre a democratização da terra como parte do processo de paz, as políticas do governo vão em direção contrária ao promover mais conflito através do aumento da exploração de recursos naturais”.
Mapa
Abaixo os lotes petroleiros de Caquetá. Em destaque a cidade de San Vicente del Caguán e o local de exploração em Los Pozos pela Emerald, empresa que pertence à estatal chinesa Sinochen
Em Los Pozos, assim que deixamos o Centro Educativo onde ocorreram as negociações de paz há 12 anos, fomos visitar os poços Capela I e Capela II, explorados pela Emerald. Toda a infraestrutura de extração e armazenamento é protegida por um destacamento do Exército colombiano. Quando nos aproximamos dos portões que isolavam os tanques, fomos alertados por seguranças de que não deveríamos estacionar ou tirar fotos. Ainda assim registramos rapidamente a entrada e saída de caminhões-tanque e algumas imagens dos poços através das grades.
No percurso de volta a San Vicente, as mesmas barreiras militares, pelas quais havíamos passado sem ser parados na ida, estavam fechadas. Os jovens soldados com fuzis nos fizeram parar e descer do jeep vermelho do Doc. Nos perguntaram o que fazíamos ali. O cabo no comando, quando percebeu que éramos estrangeiros e jornalistas, recolheu nossos passaportes e sacou seu telefone celular. Passou 10 minutos checando informações, tomando notas, sem que pudéssemos ouvi-lo.
Terminada a ligação, ele voltou com uma expressão grave, meneando a cabeça em reprimenda. “Vocês estrangeiros, jornalistas, não deveriam entrar aqui sem nos avisar. Não sabem que esse lugar está cheio de bandidos?” Era uma pergunta retórica. “Além disso, vocês estavam tirando fotos em Los Pozos. Há câmeras ali e por isso tivemos que pará-los”, acrescentou. Nossos cartões de memória já estavam nas meias ou escondidos entre os bancos do carro. Mas não houve busca.
Ouvimos ainda o sermão do cabo sobre os riscos de cruzar pela estrada com os “os bandidos” da FARC. De volta ao Suzuki vermelho cheio de bugigangas, o Doc e os jovens guias locais que nos acompanhavam não pareciam surpresos com a “dura” do Exército. Para eles, era mais um acontecimento em décadas de uma situação de guerra. É que agora, em vez de atacar a zona vermelha, o Exército defende a zona negra.
A visita a Los Pozos e San Vicente del Caguán foi feita pela equipe do projeto InfoAmazonia.org em parceria com as organizações colombianas Rede Juvenil Compaz e o Las 2 Orillas. Coloboraram nesta reportagem Giovanny Vera e Natalia Orduz.