Quase concluída, Belo Monte mudará o pulso das águas do Xingu
Gustavo Faleiros
Agostinho, juruna da aldeia Muratu. Cobalto, ribeirinho da ilha da Fazenda. Ambos nascidos e vividos na Volta Grande do Xingu. Pescadores não muito chegados à prosa, já na casa dos 70, eles conhecem cada braço, cotovelo e largo deste trecho do rio. Enquanto remam com a força de canoeiros experientes, revelam a preocupação com o futuro. ''Aqui ó, é igarapé. Quando enche o rio, os peixes entram para comer fruta'', aponta um para a barranca seca do rio. ''E quando o rio não encher mais, como vai ser?'', questiona o outro. Quase concluída, a usina de Belo Monte mudará o pulso do Xingu. Como pescar sem cheias? Como navegar o rio seco?
Quando sentaram à proa lado lado para remar, os velhos pescadores comentaram com cumplicidade. ''A gente já anda por aqui faz tempo, né?'', disse Agostinho. ''É'' , concordou Cobalto. Talvez uma maneira de assegurar que o Xingu ainda pareça o que sempre foi: um dos rios com maior biodiversidade do país, onde vivem 24 etnias indígenas.
Mas nos últimos 5 anos, os dois viram a barragem de Belo Monte erguer-se a poucos quilômetros de suas vilas e aldeias. Ao contrário dos colegas que vivem à montante da barreira, não foram removidos ou receberam largas compensações da Norte Energia, empresa que constroi, no norte do Pará, a terceira maior hidrelétrica do mundo. Eles não foram reconhecidos ou cadastrados como ''vítimas'' de Belo Monte.
No entanto, se o Ibama conceder a licença de operação à hidrelétrica e as 11 comportas da barragem se fecharem, haverá 80% menos água na Volta Grande. Essa é a sombra que paira sobre estes moradores do Xingu. O ciclo natural de cheias e vazantes não será mais o mesmo.
Há duas semanas, remei com Agostinho e Cobalto a bordo de Altas Horas, uma canoa verde e branca, pesada, sólida, cavada em um tronco único. Singramos 110km no Xingu junto a outras 10 canoas da expedição ByeBye Xingu. Por 4 dias, descemos o rio na companhia de jurunas, extrativistas e ribeirinhos, partindo da cidade de Altamira até as cataratas na terra indígena Paquiçamba.
A ''canoada'' organizada pelo Instituto Socioambiental foi uma oportunidade para ver o Xingu de perto antes do enchimento do lago da usina hidrelétrica de Belo Monte. Em Altamira, a cidade mais afetada pelo empreendimento, há obras por todo lado, novas pontes e bairros. Ali, a poeira constante, a movimentação intensa de caminhões e ônibus cheios de trabalhadores deixam mesmo a sensação de uma transformação acelerada.
Caminho percorrido pela canoada ByeBye Xingu ao longo da Volta Grande e os pontos de interesse marcados no GPS. Ver mapa ampliado aqui.
No rio Xingu, acima da barragem, a mudança também é notável. No primeiro dia de nossa jornada, a cena principal eram grandes pilhas de madeira e ilhas fluviais totalmente devastadas. Por determinação do licenciamento, todas as terras que serão inundadas, incluindo as centenas de ilhas do rio, devem ser desmatadas.
As ilhas que vimos já estão desocupadas e a limpeza da cobertura vegetal, avançada. Isso, no entanto, não pareceu razão suficiente para o Ibama conceder a aprovação final ao empreendimento. No último dia 23, a diretoria de licenciamento negou a licença de operação à usina Belo Monte apontando o descumprimento de 12 condicionantes. A maioria diz respeito a falhas no reassentamento da população ribeirinha à montante e o atraso na entrega do sistema de saneamento de Altamira. Os impactos para quem está na Volta Grande não estão entre os problemas mencionados. Veja aqui o parecer completo
A Norte Energia promete responder às demandas do Ibama e a expectativa é que uma vez estabelecido um cronograma de solução para as pendências, a licença de operação seja emitida. A própria presidente Dilma Rousseff, em coletiva à imprensa no último dia 27, após seu discurso na Assembléia Geral da ONU minimizou a negativa do Ibama. ''Tem falha? Ah, não tenha dúvida que tem. Mas fato de ter falhas não significa que a gente vá destruir esse processo. Pelo contrário, temos de reconhecê-las e melhorar'', disse a presidente segundo reportagem da BBC Brasil.
A procuradora do Ministério Público Federal Thaís Santi, baseada em Altamira, prevê que os piores impactos de Belo Monte ainda estão por acontecer. ''Os grandes problemas ainda estão por vir. A nossa grande preocupação a partir de agora é a Volta Grande do Xingu'', afirmou durante uma encontro com os jornalistas, ativistas e demais participantes da Canoada Bye Bye Xingu. Para ela, o histórico de ''má gestão do estado e ações criminosas'' da Norte Energia revela que reconhecer os impactos que sofrem os moradores à jusante da barragem não será fácil. A procuradora ressaltou a importância do monitoramento nos próximos anos para garantir que a vazão remanescente na Volta Grande do Xingu permita a sobrevivência das comunidades, uma vez que dependem da pesca e da navegação.
A partir do momento em que comece a operar, Belo Monte criará uma disputa entre a geração de energia e a manutenção da ecologia dos 100 km de rio que terão a vazão reduzida. De acordo com o Estudo de Impacto Ambiental, o hidrograma (instrumento que determina a quantidade de água que será vertida pelas comportas), o Xingu poderá ter, à jusante da barragem, uma vazão mínima de 680 metros cúbicos por segundo (m3/s) nos períodos de seca e máxima de 8000 m3/s nos momentos de cheia. A vazão média da Volta Grande ao longo do ano é de 7500 m3/s podendo chegar a 12000 m3/s nas cheias mais severas. Não há portanto garantia de que a proposta da Norte Energia permita a manutenção da ecologia deste pedaço do Xingu
Até mesmo os técnicos do Ibama apontaram o problema. Na concessão da licença prévia e de instalação, os pareceres técnicos indicam que não era possível concluir qual seria o impacto da mudança do regime das águas na biodiversidade e na população da Volta Grande do Xingu. Por isso, uma das condicionantes impostas na ocasião da licença instalação em 2011 foi um monitoramento por 6 anos após o início da operação de Belo Monte.
A barragem de Belo Monte interrompe o curso do Xingu na Volta Grande, a 40km à jusante de Altamira, no sítio Pimental. Ali haverá 6 turbinas gerando 233 MW. Mas não será esta a principal casa de força. Pouco antes do barramento, um canal de 20km desviará a água para um reservatório intermediário e depois à casa de força principal, com capacidade instalada de 11.000 MW. Abaixo, arraste o ponto branco para ver Belo Monte antes e depois. A imagem vermelha mostra o canal aberto para verter água do Xingu à casa de força. Foto Landsat julho 2015 e ferramenta preparadas em parceria com AstroDigital
Em nossas rodas de conversa nas noites que acampamos nas praias da Volta Grande, moradores da Ilha da Fazenda ou da aldeia juruna Muratu se queixaram diversas vezes de redução na pesca já sentida desde o início das obras. A captura de peixes ornamentais, uma das atividades mais rentáveis, já foi afetada pela alteração na turbidez da água. De nossos acampamentos ao longo do rio Xingu pudemos ouvir os grandes estrondos vindos das obras de Belo Monte, mesmo estando a quilômetros de distância. Funcionando por 24 horas, os canteiros emitiam luminosidade que podia sempre ser vista no horizonte, como se houvesse logo ali um estádio de futebol aceso para a partida.
Pouco antes da realização da canoada, indígenas e ribeirinhos da Volta Grande navegaram ao sítio Pimental para reclamar da lama que está se acumulando no leito à jusante da barragem. Giuliarde Juruna, cacique da Aldeia Muratu, afirma que a principal reivindicação de seu povo é que possam manter o modo de vida, pescando e navegando. Mas a incerteza é grande. ''Não sabemos o que vai ser'', repetiu algumas vezes nas noites em que conversamos.
O Instituto Socioambiental, através de um balanço divulgado em agosto – o relatório ''Belo Monte: não há condições para a Licença de Operação'', tem argumentado que os impactos sobre a pesca não são devidamente reconhecidos. Segundo o documento ''explosões, iluminação excessiva, redução da transparência da água e a dragagem de praias inteiras (…) têm afugentado e causado a morte dos peixes, inviabilizando áreas de pesca tradicionalmente utilizadas.''
Além da pressão para que o Ibama não emita a Licença de Operação, o ISA e as outras organizações da sociedade civil querem que o consórcio de Belo Monte se comprometa a monitorar os impactos da usina na população da Volta Grande. ''O que está sendo feito aqui é um laboratório humano em grande escala'', ressaltou o coordenador-adjunto do Programa Xingu do ISA, Marcelo Salazar.
Após 30 bilhões do BNDES gastos para financiar a obra – 100% a mais do que a previsão original – e de delações de pagamentos de propina por empresas que participam do consórcio, a obra de Belo Monte está próxima de chegar ao fim. Campanhas das organizações não-governamentais, mobilizações de artistas no Brasil e no mundo, nada pode parar o empreendimento. Nem mesmo uma acusação na Corte Interamericana de Direitos Humanos em 2012 foi capaz de mudar o rumo. Em todas as etapas, mesmo com as ressalvas dos técnicos de que havia problemas que inviabilizavam a obra, os dirigentes do Ibama optaram por emitir as licenças prévia e de instalação. Agora, fato consumado, a licença de operação parece ser uma questão de tempo.
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