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O que está em jogo no Marco da Biodiversidade sancionado por Dilma?

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Por Stefano Wrobleski

A presidenta Dilma Rousseff sancionou nesta quarta-feira (20) o Marco da Biodiversidade que regulamenta a repartição de benefícios advindos da exploração comercial de espécies de plantas e animais. Quase 150 associações e organizações não governamentais pediram, em carta, o veto integral do texto, indicando os trechos que “que representam vícios constitucionais e contrariedades a interesses públicos nele contidos”.

“A repartição de benefícios vai virar uma exceção”, avalia Nurit Bensusan, bióloga especialista em biodiversidade e assessora do Instituto Socioambiental (ISA), sobre o Marco da Biodiversidade aprovado pelo Congresso Nacional em 28 de abril e sancionado nesta quarta-feira.

Nurit Bensusan: "Toda a lógica da repartição de benefícios foi completamente rifada nesta nova lei" (Foto: arquivo pessoal)

Nurit Bensusan: ''Toda a lógica da repartição de benefícios foi completamente rifada nesta nova lei'' (Foto: arquivo pessoal)

A lei 13.123 deve alterar a maneira como os benefícios resultantes do uso da diversidade biológica brasileira são compartilhados com o Brasil ou com os povos que têm algum conhecimento tradicional vinculado a plantas, animais e microrganismos.

As discussões se estendiam desde 1992, quando foi aprovada a Convenção da Biodiversidade – ratificada dois anos depois pelo Brasil. O intuito é oferecer meios de subsistência aos países e povos de locais que têm grande número de espécies vivas e que são, por isso, cobiçadas pelas indústrias de remédios e cosméticos, entre outras.

Mas o Marco da Biodiversidade, elaborado pelo Executivo e aprovado com celeridade pelo Congresso Nacional para substituir a medida provisória 2.186-16 de 2001, tem buracos que devem causar “insegurança jurídica”, de acordo com Nurit. Além disso, a nova lei desrespeita a convenção ratificada pelo Brasil por não ter contado, em sua elaboração, com a participação de indígenas e outros povos tradicionais.

Além disso, há três modalidades para a divisão de ganhos com a biodiversidade. Caso envolva um patrimônio genético (uma planta, por exemplo), as empresas negociam diretamente com a União e podem substituir o pagamento de royalties por uma capacitação de pessoas para a conservação da biodiversidade. Se envolver um conhecimento tradicional de origem não identificável (como um uso medicinal e disseminado de alguma erva), as empresas devem pagar os royalties diretamente a um fundo gerido pela União. “Mas aí, neste caso, você tem um conjunto tão grande de isenções que ninguém vai ser beneficiado coisa nenhuma”, afirma Nurit.

A terceira modalidade, de conhecimento tradicional de origem identificável (por exemplo, uma bebida usada medicinalmente por populações determinadas), exige que parte dos valores pelo uso deste conhecimento vá para o detentor do conhecimento e parte para a União: “Estamos todos de acordo que o conhecimento tradicional é vastamente compartilhado”, o que justifica, de acordo com a bióloga, esta divisão. Mas quem decide qual será o povo beneficiário destes recursos é a própria empresa ou pesquisador que fizer uso da biodiversidade.

Durante cerimônia no Palácio do Planalto a ministra do Meio Ambiente Izabella Teixeira rebateu as críticas à nova lei. Ela acusou os representantes dos movimentos sociais de estarem “fazendo política”. “Vários representantes de comunidades tradicionais estiveram no Ministério do Meio Ambiente, inclusive, concordando com a proposta. Temos os registros e se divulgarmos os nomes dessas pessoas vamos saber quem está fazendo política”, destacou segundo reportagem da EBC.

Confira abaixo os tópicos da entrevista feita pelo InfoAmazonia com Nurit Bensusan sobre as implicações do Marco da Biodiversidade.


– Origem das propostas para repartição de bens
Antes da Convenção da Biodiversidade, alguém chegava aqui, coletava uma planta, por exemplo, e ia embora. Acabou. A gente tem inúmeras plantas e vários recursos genéticos nossos em vários jardins botânicos no mundo. E eles não são ilegais, porque, na verdade, o que acontecia é que não tinha regra.

Convenção da Biodiversidade
Anunciado no Rio de Janeiro durante a Eco-92, o texto está atualmente em vigor em 196 países e é um dos mais abrangentes recursos legais sobre todos os seres vivos. A convenção determina, para os países que a ratificaram, a repartição dos ganhos (como lucros) resultantes do uso de recursos genéticos, beneficiando principalmente os 17 países, como o Brasil, considerados megadiversos, que são os que têm grande diversidade biológica em seus territórios.
eco-92

As empresas que tinham interesse em coletar determinados recursos que poderiam ter princípios ativos para novos medicamentos ou cosméticos coletavam à vontade. E isso acontecia em todos os lugares do mundo, não só no Brasil.

Constatou-se ao longo do tempo que os países megadiversos, em geral, possuíam um desenvolvimento tecnológico e científico menor do que os países que não eram megadiversos. A Convenção da Biodiversidade, então, trouxe o mecanismo da repartição de benefícios sobre o acesso e uso dos recursos genéticos e do conhecimento tradicional, que tentava equilibrar tecnologia e recursos com biodiversidade.

A ideia era que esses países megadiversos pudessem, de alguma forma, usar sua biodiversidade de forma sustentável e conseguissem, com isso, duas coisas: alguma transferência de tecnologia e também recursos para conservar a biodiversidade.

Mas a convenção é uma carta de intenções. Ela não disse como a gente iria repartir esses benefícios, que instrumentos iriam ser criados para poder fazer isso. Por isso, mesmo quando a convenção foi ratificada pelo Brasil, em 1994 – quando passou a ter força de lei –, não havia regras para determinar a repartição de benefícios. Isso começa a ser debatido em 1995, no Senado, através de um projeto de lei da Marina Silva. Ele foi sendo debatido das mais diversas formas até que foi regulamentado, em 2001, pela medida provisória que estava vigor e que foi revogada quando este novo marco legal foi sancionado.

Ribeirinhos: Assim como indígenas, são populações tradicionais e não foram consultados para o projeto de lei (Foto: Celso Abreu/Flickr)

Ribeirinhos: Assim como indígenas, são populações tradicionais, mas não foram consultados para o projeto de lei (Foto: Celso Abreu/Flickr)

– Dificuldades de fiscalização
Atualmente, a medida provisória regula o acesso à biodiversidade. Então, cada vez que o pesquisador quer coletar determinada planta ou animal, ele tem que pedir autorização do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGen).

Recurso genético
A Convenção da Biodiversidade define material genético como “todo material de origem vegetal, animal, microbiana ou outra que contenha unidades funcionais de hereditariedade”.

Já a nova lei não regula mais o acesso. Ele regula o uso do recurso genético. Então, a fiscalização e regulação só começa quando o usuário [pesquisador, empresa] resolve usar economicamente o recurso genético. Quando ele gera um produto acabado (aquele que vai para a prateleira), aí que tem que repartir benefícios.

A situação agora vai ficar muito mais complicada porque você tem toda uma cadeia produtiva imensa, que é ramificada e globalizada e que, geralmente, passando por empresas diferentes. Quer dizer, a mesma empresa que acessa aquele recurso genético não necessariamente é a mesma que produz aquilo que vai para a prateleira.

Quem é que garante que vai ser possível rastrear que aquele produto tem algum recurso genético da nossa biodiversidade ou conhecimento tradicional que veio de algum povo indígena brasileiro? A questão vai ficar mais complexa porque a rastreabilidade é mais complicada. Vai ficar um vácuo completo de controle.

– Insegurança jurídica
Tem muitas questões na lei sancionada que podem ser judicializadas e isso vai gerar muita insegurança jurídica. O texto está cheio de problemas e mesmo as empresas, que fizeram pressão pela aprovação, vão ficar muito saudosas da medida provisória.

Murumuru: Fruto está no centro de processo, em tramitação no STF, movido contra a Natura por acusação de biopirataria (Foto: Beraca/Flickr)

Murumuru: Fruto está no centro de processo, em tramitação no STF, movido contra a Natura por acusação de biopirataria (Foto: Beraca/Flickr)

O texto todo poderia ser alvo de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) no Supremo Tribunal Federal (STF) porque a Constituição diz que o Estado tem que controlar e fiscalizar os recursos do patrimônio genético brasileiro, mas o que tem nessa lei não é fiscalização, nem controle. E uma Adin que fica tramitando já gera uma insegurança jurídica de fundo.

Além disso, a proposta fala que só serão alvo de repartição de benefícios produtos acabados onde o componente do patrimônio genético ou do conhecimento tradicional seria o elemento principal de agregação de valor para esse produto acabado. É super subjetivo. O que é elemento principal de agregação de valor? Isso vai ser alvo de debates infinitos em termos judiciais.

Um exemplo hipotético de como isso é absurdo: você descobre uma planta que permite uma absorção através da pele dez vezes mais eficiente que qualquer coisa a gente conhece e que está associada ao conhecimento tradicional de um povo qualquer. Todas as empresas vão querer colocar isso nas suas pomadas. Acontece que, quando você comprar uma pomada para curar uma micose, o elemento principal de agregação de valor é o princípio ativo que mata o fungo. Não é se absorve mais ou menos rápido. Então, você não vai ter repartição de benefício sobre esta situação.

Aliás, você tem milhares de outras situações sobre as quais não vai haver repartição de benefícios. A repartição de benefícios vai virar uma exceção e esse é o problema.

– Disputas pela repartição de benefícios
Vai haver disputas. Pode chegar a existir quase um leilão entre as comunidades que detêm algum tipo de conhecimento de origem identificável.

O texto está cheio de problemas e mesmo as empresas vão ficar muito saudosas da medida provisória

Para o uso da biodiversidade, existe um mecanismo de consentimento prévio e informado na lei que não é nem consentimento, nem é prévio, nem é informado. Consentimento quer dizer que você pode dizer “sim” ou “não”. Mas, por exemplo, se quatro povos compartilham um determinado conhecimento, um deles pode dizer para uma empresa interessada: “Vem aqui comigo que a gente faz um acordo de repartição de benefícios mais baratinho do que os demais com vocês”. A repartição de benefícios é feita com quem aquele conhecimento foi acessado. Então, nessa lei, os povos não vão ter a possibilidade, na prática, de dizer não.

Convenção 169 da OIT
O instrumento tem poder de lei no Brasil desde 2004 e é o principal mecanismo internacional orientado especificamente aos direitos dos povos indígenas e tribais. O ponto central da convenção é o direito que estas populações têm de serem ouvidas sobre legislações, obras e outros assuntos que as afetem diretamente.

– Consulta aos povos atingidos
Segundo a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), não dá pra fazer novos dispositivos legais que têm a ver com povos tradicionais sem consultá-los. E isso não aconteceu durante a criação deste marco legal. Isso já começa sendo o fim do mundo.

Outra infração à convenção é que, em vários momentos, a lei fala que os povos indígenas e as comunidades tradicionais podem ser ouvidos. Na verdade, eles deveriam necessariamente ser ouvidos em todas as situações.

– Impactos à Amazônia
Toda a lógica da repartição de benefícios foi completamente rifada nesta nova lei. E isso impacta diretamente a Amazônia.

É que é na Amazônia que você tem mais biodiversidade. Mas é também lá onde há taxas crescentes de desmatamento e destruição, o que faz parte de todo um modelo de ocupação completamente predatório.

A gente está considerando a Amazônia como uma maldição da qual a gente quer se livrar

A possibilidade que a gente tinha reverter isso e de criar uma vertente de sustentabilidade com produtos que vêm da Amazônia – em que a gente teria uma repartição de benefícios bastante justa e equitativa, de forma que se pudesse gerar recursos e capacidade para a conservação – está se esvaindo.

A gente está, mais uma vez, considerando a Amazônia como uma maldição da qual a gente quer se livrar.