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Arquivo : dezembro 2014

Ataque de índios isolados ao povo matís deixa dois mortos e provoca pânico
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Aldeia de índios korubo no Vale do Javari, no Amazonas (Foto: Funai)Aldeia de índios korubo no Vale do Javari, no Amazonas (Foto: Funai)

A União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja), no Amazonas, informou nesta segunda-feira (08) que duas lideranças indígenas da etnia matís foram mortas a bordunadas por quatro índios isolados do povo korubo na aldeia Todowak, no rio Coari, em 05 de dezembro, na Terra Indígena Vale do Javari, no extremo oeste do Amazonas, fronteira com o Peru.

Em entrevista à agência Amazônia Real, o indígena da etnia marubo e membro da Univaja, Manoel Chorimpa, disse que as lideranças mortas, Ivan e Damã, estavam na roça quando foram atacadas pelos korubo com bordunas.

A Funai (Fundação Nacional do Índio), em Brasília, confirmou as mortes dos matís. O Coordenador Geral de Índios Isolados e Recém Contatados, Carlos Travassos, classificou o ataque como uma quebra de protocolo entre as duas etnias da Amazônia. “Na memória dos matís sempre ocorreu uma situação oposta, os matís que atacavam os korubo. Os matís sempre roubaram as mulheres dos korubo, mas isso (mortes) nunca ocorreu”, disse.

Segundo Carlos Travassos, os dois matís mortos, Ivan e Damã, eram lideranças respeitadas. “Ivan participou de contatos com os índios korubo por vários anos”, afirmou coordenador.

Em nota enviada à agência Amazônia Real, a Univaja afirma que após o ataque dos korubo, 30 guerreiros matís partiram para selva para revidar as mortes, numa ação classificada pela organização como um confronto inter étnico motivado por “grande revolta” e resultado do descaso da ação indigenista da Funai na região do Vale do Javari.

A Funai negou a ocorrência de revide dos matís contra os korubo. Segundo Carlos Travassos, os matís estão reunidos por conta do luto das lideranças. “Não há informações sobre revide ao ataque”, disse o coordenador.

Possíveis motivos do ataque

Segundo a nota da Univaja, a motivação do ataque aos matís seria a remoção de um subgrupo de índios korubo recém contatados. “Os índios do Subgrupo foram trazidos para o período de quarentena na Base de Vigilância da Frente Etnoambiental da Funai na confluência dos rios Itaquaí e Ituí. Depois foram levados para aldeia dos korubo de recente contato ao invés de ser devolvido ao local, onde estava o restante do seu grupo”, diz trecho da nota.

A Univaja afirma na nota que a situação de possível conflito entre as etnias foi alertada através de notas e ofícios à Funai. “Tem indígenas isolados chegando em quase todas as comunidades dos que já são contatados e que precisava uma ação de vigilância permanentes com estrutura adequada sobre índios isolados da tutela da Funai, bem como precisava melhor proteção do próprio território, com condições financeiros e um quadro de pessoal, para operacionalização de atividades, do abandono de postos de vigilâncias”, afirmou a organização indígena.

A Funai disse que está investigando o motivo do ataque dos korubo aos matís. O coordenador Carlos Travassos afirmou que o ataque não tem relação com o subgrupo korubo recém contatado. “A Funai possui informações suficientes para concluir que a situação (o ataque) não têm relação com esse Subgrupo recém contatado. A criação da aldeia Todowak (dos matís), em 2011, aproximou as duas etnias, mas o motivo dos ataques está sendo investigado. Todo mundo sabe que conflito pode acontecer entre índios isolados e com quem está perto do território deles”, disse Tavares.

O último contato de índios korubo, segundo a Funai, aconteceu no dia 09 de setembro. Os korubo mantiveram diálogos com indígenas da etnia Kanamari da aldeia Massapê, que fica também na Terra Indígena Vale do Javari.

A Terra Indígena do Vale do Javari está localizada no município de Atalaia do Norte, distante a 1.136 quilômetros de Manaus. Na reserva vivem cinco povos contatados: marubo, kanamari, mayoruna, matís e kulina. Há também pelo menos 16 referências de índios isolados ou de pouco contato, segundo a Funai. A estimativa populacional indígena no Vale do Javari é de cinco mil pessoas.

Conflito entre etnias

Em entrevista à agência Amazônia Real, o indígena da etnia marubo, Manoel Chorimpa, atribuiu o ataque dos korubo à suspeita destes de que os matís teriam sido os responsáveis por remover o subgrupo que havia sido contatado pela Funai. Para os korubo, este grupo continua “desaparecido”.

Segundo Chorimpa, o subgrupo composto por seis pessoas, entre elas três crianças, apareceu no rio Itaquaí, próximo à aldeia Massapê, onde vivem os índios da etnia kanamari, e foi mantido em quarentena pela Frente Etnoambiental da Funai que atua no Vale do Javari.

Ele disse que, em seguida, o subgrupo foi levado pela Funai para a aldeia korubo na área do rio Ituí, onde vivem indígenas conhecidos como “grupo da Maiá”, contatado em 1996 pelo órgão indigenista. Este pequeno grupo korubo, que deixou de ser isolado, é composto por 17 pessoas. Maiá é a principal liderança do grupo.

“O problema é que a Funai, ao invés de devolver os índios para o grupo deles decidiu mantê-lo na sua base etnoambiental e depois levá-lo para a aldeia da Maiá. A Funai fez isso para evitar transtorno com os kanamari, mas acabou causando conflito com os matís”, disse Chorimpa, que está acompanhando os acontecimentos por meio de comunicação via radiofonia tanto com os kanamari quanto com os matís. Naquela área não pega sinal de celular.

A preocupação agora é com um conflito iminente. Indígenas matís, inclusive os que moram na cidade de Atalaia do Norte, seguiram para suas aldeias para se vingar da morte dos dois membros de sua etnia.

O coordenador da Funai em Atalaia do Norte, Bruno Pereira, junto com outros três servidores seguiram para a área dos matís no mesmo dia das mortes, segundo Chorimpa.

Ele afirmou que uma das medidas que já está sendo feita pela Coordenação Regional da Funai de Atalaia do Norte é transferência dos indígenas matís da aldeia Todowak para a aldeia Tawaya, no rio Branco, para evitar novos confrontos. Chorimpa disse que mantém contato com o coordenador regional da Funai, Bruno Pereira, por equipamento de radiofonia.

“Tentamos convencer o coordenador a não ir neste momento. Não sabemos o que pode acontecer com ele. Trinta 30 matís seguiram para a área onde ocorreram as mortes, mas soubemos que neste domingo (07) eles retornaram e decidiram não atacar os korubo por enquanto. Mas é só o que sabemos até agora”, disse Chorimpa.

Segundo Manoel Chorimpa, o território dos matís fica próximo à área onde vive o grupo de korubo. “Há quase três anos os matís decidiram voltar à sua área tradicional, nos rios Branco e Coari. Só que ela fica bem próximo da área dos korubo. Isso pode provocar algum conflito”, disse ele.

Manoel Chorimpa afirmou que há uma recente preocupação dos indígenas com o aumento da frequência dos contatos de alguns subgrupos de índios isolados no Vale do Javari. Mas ele não sabe dizer o motivo.

“Pelos depoimentos que conseguimos deste subgrupo que fez contato em setembro, ficamos sabendo que o problema é que vem aparecendo muitas doenças, muita gente morrendo de malária. Mas não sabemos ao certo. É preciso apurar”, disse.

Conforme o indígena marubo, o maior problema está na pouca estrutura financeira e de quadro de pessoal da Funai na área. “Houve o concurso, mas a maioria dos que passou já foi embora. A Funai quase não possui recursos humanos. É preciso ter mais gente pelo menos para preservar a integridade física dos indígenas. Se isto não acontecer, pode acontecer uma tragédia total”, afirmou.

A reportagem não conseguiu falar com lideranças matís. Segundo Chorimpa, todos os matís que estavam em Atalaia do Norte seguiram para suas aldeias.

“Muitos foram de balieira e pec-pec (pequenas embarcações de motor) ou de helicóptero da coordenação. Mas eles não quiseram ficar. Decidiram seguir pois não gostaram de saber da morte de dois parentes desta forma”, disse Chorimpa. A população de índios matís é pouco de 300 pessoas.

Em nota enviada à reportagem, a Funai disse que o grupo de korubo contatado em 9 de setembro não possuí relação, “até onde se pode verificar, com o grupo denominado ‘korubos do Coari’, os prováveis envolvidos neste conflito”.

Segundo a Funai, os coordenadores da Coordenação Regional do Vale do Javari, Bruno Pereira, e da Frente de Proteção Etnoambiental Vale do Javari, Beto Vargas, se encontram desde domingo (7) na aldeia Todowak, prestando o apoio necessário à comunidade e aos parentes dos matís mortos.

Índios isolados

Em seu site na internet, a Funai afirma que são considerados “isolados” os grupos indígenas que não estabeleceram contato permanente com a população nacional, diferenciando-se dos povos indígenas que mantêm contato antigo e intenso com os não-índios.

É a Coordenação Geral de Índios Isolados e Recém Contatados, por meio das Frentes de Proteção Etnoambiental, a responsável pela proteção dos povos indígenas isolados e de recente contato. A coordenação garante também aos povos isolados o pleno exercício de sua liberdade e das suas atividades tradicionais sem a necessária obrigatoriedade de contatá-los.

Conforme a Funai, atualmente no Brasil existem cerca de 107 registros da presença de índios isolados em toda a Amazônia Legal. Esse ano dois grupos isolados fizeram contatos. Além dos korubo, no dia 29 de junho índios denominados “Povo do Rio Xinane” entraram em contato com indígenas Ashaninka da aldeia Simpatia, na fronteira do Acre com o Peru.

Leia mais no site da Funai: índios korubo foram contatados em 1996 e tinham marcas de balas por conflitos com não-índios.

– Esta matéria foi originalmente publicada no Amazônia Real e é republicada através de um acordo para compartilhar conteúdo.


Em Conferência da ONU, Brasil anuncia ajuda a países com desmatamento
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Gustavo Faleiros

Ministra do Meio Ambiente, Isabella Teixeira, fala na plenária da 20a Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas: redução do desmatamento nos últimos anos foi destaque do discurso.

Ministra do Meio Ambiente, Isabella Teixeira, fala na plenária da 20a Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas: redução do desmatamento nos últimos anos foi destaque do discurso.

A experiência de quase 30 anos do Brasil no combate ao desmatamento vai ser replicada em outros países da Amazônia. Em Lima, Peru, durante a 20a Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, a COP 20, o governo brasileiro e o BNDES apresentaram um plano de implementar sistemas de monitoramento em parceria com a Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA)

Segundo o secretário-geral da organização, o surinamês Robby Dewnarain Ramlakhan, um investimento de US$ 8 milhões de dólares (R$ 19 milhões) já está em curso através do Fundo Amazônia, reserva de R$ 2,1 bilhão de reais gerida pelo BNDES para apoiar projetos tanto no Brasil como em países da PanAmazônia.

Os recursos não são reembolsáveis. Ou seja, feitos em modalidade distinta ao empréstimo. Anunciado em um evento que contou com a presença das delegações do Brasil e do Peru, o projeto prevê a criação de salas de observação de dados satelitais, treinamento de 150 técnicos e compras de equipamento para a vigilância da Amazônia nos outros 7 países membros da OTCA.

Além disso, a iniciativa pretende consolidar um mapa do estado da floresta amazônica em toda sua extensão entre 2000 e 2010. Ao contrário do Brasil, que já monitora o desmatamento desde 1988, os outros países ainda estão criando uma base histórica de dados. A metodologia adotada pela OTCA reproduzirá aquela utilizada pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), responsável por determinar a taxa oficial de deflorestação na Amazônia brasileira.

“Cada país tem uma particularidade. O Peru tem 90% dos seus desmatamentos realizados em áreas de menos de 1 hectare, que são muito difíceis de monitorar”, disse o coordenador nacional de florestas, Gustavo Suarez, ao comparar com o caso brasileiro, onde ainda se derrubam áreas de grande extensão (veja o mapa do desmatamento abaixo).

Florestas em recuperação

Também nesta quarta, a ministra do Meio Ambiente, Isabella Teixeira, fez seu discurso na plenária da COP20 e voltou a exaltar as ações do Brasil na redução do desmatamento. Ela mencionou a última cifra divulgada pelo governo –  queda de 18% em 2014 – como indicação do compromisso do Brasil com a redução de gases de efeito estufa.

As mudanças pelo uso da terra (queimadas, deflorestamento) continuam a ser a principal fonte de emissões do país. A constante redução do desmatamento coloca o Brasil em posição confortável nas negociações do clima na COP20. A ONU tenta chegar a um esboço do novo acordo para mitigar as causas e efeitos do aquecimento global. No ano que vem,  em Paris (COP 21), se espera a assinatura de um novo tratado com metas que passarão a valer em 2020.

“Não apenas as taxas de desmatamento foram reduzidas significativamente em 82% nos últimos 10 anos, mas recentemente dados indicam que estamos verificando um substancial processo de regeneração florestal”, afirmou a ministra. Ela se referiu a informações lançadas há poucas semanas pelo sistema TerraClass, do INPE, que reveleram que 23% das terras desmatadas na Amazônia possuem matas em recuperação. “Isso representa que o Brasil deixou de emitir 650 milhões de toneladas de carbono por ano”, disse.

Mapa interativo do desmatamento na Amazônia – Dados INPE (sistemas Prodes) e sistema Terra-i


Na Colômbia, petróleo chegou na região antes dominada pelas FARC
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Gustavo Faleiros

Esta reportagem foi originalmente editada no site da Agência PúblicaEla relata a viagem da equipe do InfoAmazonia em outubro para a Amazônia colombiana para conhecer as mudanças pelas quais passa a região no momento em que o governo do país negocia a paz com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, as FARC

A presença militar na Amazônia colombiana é ostensiva. Intensidade do combate às FARC nos últimos anos foi acompanhado pela chegada da indústria do petróleo. Foto: Giovanny Vera/InfoAmazonia

A presença militar na Amazônia colombiana é ostensiva. Intensidade do combate às FARC nos últimos anos foi acompanhado pela chegada da indústria do petróleo. Foto: Giovanny Vera/InfoAmazonia

Don Luiz Eduardo Godoy Sanchez, o “Doctor” ou simplesmente “Doc”, fala efusivamente, chacoalha os braços no ar e engrossa a voz para contar sobre os dias em que a cúpula das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, as FARC, e o presidente Andrés Pastrana transformaram a vila de Los Pozos no epicentro político do país. Tudo se passou entre novembro de 1999 e fevereiro de 2002, quando o governo colombiano aceitou dialogar com a guerrilha e passou a negociar um cessar fogo ao conflito que já se arrastava por meio século. Porém, a busca pela paz fracassou. Anos depois, em 2014, o atual presidente colombiano Juan Manuel Santos retomou o esforço.

Enquanto escutamos ao Doc, emissários do governo e da guerrilha se preparavam para mais uma rodada de negociações. Desde o ano passado diversas reuniões foram realizadas em Havana, Cuba com intento de chegar a um cessar fogo entre a guerrilha e Exército em 2015.

Estamos no Centro Educativo Los Pozos, no pátio vazio, amplo e aberto como o de muitas escolas rurais na Amazônia. Murais pintados pelos alunos exibem mensagens como “Paz”, “Tolerância”, “Respeito”. Há um campinho de futebol e pequenas casas de muros verdes aos poucos são carcomidas por um matagal. “Ali era onde os líderes das FARC se reuniam antes da chegada dos homens do governo” conta o médico veterinário, apontando as taperas.

A poucos quilômetros se veem os tanques de armazenamento e exploração da Emerald, petroleira britânica comprada há pouco pela estatal chinesa Sinochen. Los Pozos – em português, “os poços” –não nega o nome: suas poucas casas e moradores foram atraídos pelas promessas da indústria do petróleo. A Shell foi a primeira a chegar ali em 1917 e desde então as tentativas de tirar o ouro negro não pararam. Mas foi apenas em 2010 que a extração de fato começou.

No surrado Suzuki Vitara vermelho do Doc havíamos cruzado, sem ser parados, vários bloqueios militares formados por jovens soldados portando fuzis, camuflados entre as árvores ou sentados em barricadas frente a metralhadoras apontadas para o céu, ociosas. Percorremos 28 km em uma estrada de terra a partir de San Vicente del Caguán, cidade do departamento amazônico de Caquetá, no sudoeste do país.

Presidente do Comitê Municipal de Pecuaristas, o veterinário Don Luis Eduardo Sanchez Godoy, o “Doc”, conta os momentos que presenciou quando as FARC mantinham sua zona autônoma em San Vicente del Caguán. Foto: Gustavo Faleiros/InfoAmazonia

Presidente do Comitê Municipal de Pecuaristas, o veterinário Don Luis Eduardo Sanchez Godoy, o “Doc”, conta os momentos que presenciou quando as FARC mantinham sua zona autônoma em San Vicente del Caguán. Foto: Gustavo Faleiros/InfoAmazonia

A pequena San Vicente, às margens do rios Caguán e Yari, é conhecida em toda Colômbia por ser uma das quatro cidades que fizeram parte da “zona de despeje”, ou a região autônoma das FARC. Entre 1998 e 2002, o presidente Pastrana, em preparação ao que imaginava ser o caminho da paz, fez o inesperado: reconheceu as FARC como organização política e declarou partes do território “zona de distensão”, onde o Exército colombiano deixava de atuar e perseguir guerrilheiros.

Fomos a San Vicente e a Loz Pozos para ver os locais que foram palco deste período importante da história da Colômbia. Mas no desolado Centro Educativo Los Pozos não havia, com exceção das pinturas infantis, qualquer referência ao passado. Ali eu esperava pelo menos encontrar uma placa ou monumento, talvez algo como “Aqui ocorreram as mesas de negociação pela paz entre guerrilheiros e o governo” Por outro lado, não seria surpreendente ler algo como “Aqui as FARC deixaram Pastrana plantado, esperando com cara de taxo”.

A cadeira vazia

A imagem da “silla vacía” que marcou o fracasso das negociações de paz entre o governo colombiano e as FARC em XXX. O líder guerrilheiro não apareceu e deixou o presidente Andrés Pastrana esperando. Foto: reprodução/EL País

A imagem da “silla vacía” que marcou o fracasso das negociações de paz entre o governo colombiano e as FARC em 2001. O líder guerrilheiro não apareceu e deixou o presidente Andrés Pastrana esperando. Foto: reprodução/EL País

O que ocorreu em Los Pozos os colombianos consideram um fracasso retumbante. A representação maior do colapso das negociações de paz em 2001 , que era a segunda e mais importante na história do país, é uma foto do presidente neste mesmo pátio escolar, sentado sozinho em uma mesa enfeitada com bandeiras da Colômbia e ladeado por uma cadeira desocupada. Tirofijo, apelido de Manuel Marulanda, o então líder máximo das FARC, não apareceu naquele dia e em nenhum outro dia. Era o fim das esperanças de um acordo de paz, depois de dois anos de negociações.

O episódio deu origem a uma conhecida expressão colombiana : “la silla vacía” ou a cadeira vazia, que batiza inclusive um dos sites de jornalismo investigativo mais conhecidos e influentes do país, parceiro da Agência Pública. Assim a cadeira de plástico branco, dessas que se colocam na beira de uma piscina ou em uma festa de jardim, se tornou o símbolo do impasse político que ainda hoje vive a Colômbia: 60 anos de conflito entre guerrilhas de esquerda, Exército e grupos paramilitares de direita.

O pesquisador Harvey F Kline, em um seu livro “Crônicas de um fracasso anunciado” (Chronicles of a Failure Foretold, University of Alabama Press), argumenta que o processo de paz lançado por Pastrana em 1999 foi uma manobra mal arquitetada. Naquele momento nenhum dos lados envolvidos de fato estava convencido, ou mesmo interessado, em chegar à paz. Nos dois anos em que duraram as negociações, diversos atentados promovidos por células guerrilheiras e pelos paramilitares interromperam as conversas, até que foram abandonadas por completo em 2001. O fim da zona de distensão em 2002 foi a pedra final no processo.

“Nós acreditávamos que era a paz, mas de paz não havia nada. Pastrana nos estava enganando. E nos enganou por quê? Porque queria matar a todos, acabar com as FARC depois de conhecer toda a organização armada e política”, analisa o Doc.

Ex-proprietário de uma farmácia veterinária, o doutor agora é o presidente do Comitê Municipal de Pecuaristas de San Vicente del Caguán. Ele é um homem baixo com uma barriga saliente. A cara suarenta ele seca no poncho, um pano de algodão com franjas amarelas, azuis e vermelhas – as cores da Colômbia – que os homens nesta região levam sobre os ombros. Avançado em sua sexta década de vida, seus cabelos grisalhos provam que viveu os momentos mais críticos da guerrilha na região. “Após o fim das negociações de paz, vieram os assassinatos mais cruéis. Eu mesmo sei porque tive que tirar meu sócio esquartejado de dentro de um rio.”

Como líder dos pecuaristas, seu alinhamento político parece improvável. Fala sem titubear que havia vantagens sob o comando das FARC. Segundo ele, não se roubava gado e não se podia desmatar, além de outros benefícios morais da presença guerrilheira. “Nunca vi nenhum deles beber ou fumar”, garante. Este entusiasmo lhe rendeu o apelido de “veterinário da guerrilha”, algo que claramente não o agrada. “Eu processo quem me chama assim. Nunca fiz nenhum serviço para as FARC”.

A relação com o grupo marxista é um tema vivo entre os habitantes de San Vicente. A cidade foi o centro da ocupação das FARC e sua história recente coincide com os fatos mais marcantes da própria história da Colômbia. Se na vila de Los Pozos se criou a “silla vacía” durante as negociações de paz, foi em San Vicente, retornando de uma visita de campanha, no dia 23 de fevereiro de 2002, que a candidata à presidência Ingrid Betancourt foi sequestrada por guerrilheiros. Com eles, permaneceu prisioneira pelos próximo seis anos e meio, configurando um dos episódios mais amargos de décadas de conflito.

Agora, a zona negra

Panfletos distribuídos pelo Exército em barreiras na entrada da cidade de San Vicente del Caguán. Nesta estrada, as FARC sequestraram a candidata à presidência Ingrid Betancourt. Foto: Giovanny Vera/Infoamazonia

Panfletos distribuídos pelo Exército em barreiras na entrada da cidade de San Vicente del Caguán. Nesta estrada, as FARC sequestraram a candidata à presidência Ingrid Betancourt. Foto: Giovanny Vera/Infoamazonia

Chegamos a San Vicente em um sábado de manhã. Tudo parecia típico de um fim de semana de uma cidade do interior: um dia de compras, festas e feiras. O centro estava abarrotado de homens usando chapéus de cowboy pelas praças e bares. As lojas de roupa tocavam música alta e os locutores com voz de radialista anunciavam promoções . Em alguns momentos, o trânsito de caminhões, carros e muitas motocicletas travava as ruas por completo.

Apesar da aparente normalidade, logo na praça central, em torno dos prédios administrativos, havia barricadas e soldados paramentados, preparados para a batalha.

Com 62 mil habitantes, San Vicente vive o que chamam seus habitantes de “o estigma” da zona de distensão. Alguns como o Doc parecem saudosos daquele tempo, mas outros lembram dos “impostos” cobrados pelas FARC e ficam ultrajados com qualquer menção de que a cidade possa ainda apoiar aos guerrilheiros ou camponeses trabalharem para a indústria da cocaína.

A própria presença do Exército demonstra que a tensão continua. Em uma barreira militar bem na entrada da cidade, faixas enormes com as cores da bandeira comunicam em letras garrafais “Guerrilheiro, volte a viver, desmobilize-se”. Um homem fantasiado de Mickey, como os que animam festas de crianças, distribuía folhetos pedindo aos moradores para não dar dinheiro à guerrilha.

De fato, a guerra não terminou. No momento em que visitávamos as cidades do departamento de Caquetá, o governo do presidente Juan Manuel Santos preparava uma nova rodada de negociações em Havana, Cuba. No entanto, no último dia 14 de novembro, as conversas foram congeladas. A razão? Guerrilheiros teriam rompido o compromisso de não realizar mais sequestros. Um general foi raptado em Chocó, norte do país.

O enfraquecimento das FARC causado pela repressão capitaneada na primeira década dos anos 2000 pelo então presidente Álvaro Uribe, criou uma sensação de paz ou ao menos estabilidade econômica em Caquetá. Além da militarização definitiva, a estratégia de Uribe para debilitar as FARC foi acabar com o plantio de coca, uma das principais fontes de recursos financeiros da guerrilha. Nos últimos anos, milhares de camponeses que haviam sido expulsos de suas terras em meio ao conflito retornaram. Atualmente, o departamento possui a maior taxa de desmatamento em toda a Amazônia colombiana, enquanto a agricultura e a pecuária voltaram a crescer.

Mapa do desmatamento

Paradoxalmente, com a paz mais próxima, a disputa por uso da terra e outros recursos naturais se tornou tema central na Colômbia. Tanto no governo de Uribe como no de Santos foram aceleradas as concessões e licenças para mineração e exploração de petróleo. De acordo com o Atlas Amazônia sob Pressão, da Rede Amazônica de Informação Socioambiental Georeferenciada (RAISG), a Colômbia é o segundo país na América do Sul com maior extensão de lotes petroleiros na Amazônia, atrás apenas do Peru. São 193.4 mil Km2, o que representa 40% de toda a zona de floresta tropical no país. Apenas uma pequena parte – 23,4 mil Km2 – está de fato em exploração, mas é o potencial da abertura de novos poços que gera controvérsias.

Atualmente existem na Colômbia 418 campos de exploração de petróleo e a média de extração é de 987 mil barris diários, a melhor cifra em 15 anos, mas ainda assim baixa para o potencial. A meta estabelecida pelo governo Santos é manter uma produção acima de 1 milhão de barris por dia. Mas, contando apenas com as reservas já descobertas, o ritmo atual de produção fará com que o petróleo colombiano termine em pouco mais de seis anos. Por isso a corrida para descobrir novos campos petroleiros na Amazônia.

A gestão do presidente Santos assinou em setembro de 2014 um decreto que cria as “licenças express”, um conjunto de condições que permite ao órgão ambiental aprovar empreendimentos em 90 dias. Especialistas e a oposição criticaram duramente a decisão, pois afirmam que não existe técnicos e recursos financeiros suficientes na ANLA, o equivalente ao Ibama no Brasil, para garantir análises rigorosas em um prazo tão curto. Surpreendentemente, uma das atividades que foi liberada de licenciamento ambiental foram as sísmicas para prospecção de petróleo. A sísmica é um processo de gerar vibrações debaixo da terra cujos reflexos podem indicar a presença de reservatórios subterrâneos.

Angel Medina, presidente da UNIOS, que reúne movimento sociais. Para ele governo Santos cria mais conflito ao incentivar a exploração do petróleo. Foto: Natalia Orduz/Las 2 Orillas

Angel Medina, presidente da UNIOS, que reúne movimentos sociais. Para ele governo Santos cria mais conflito ao incentivar a exploração do petróleo. Foto: Natalia Orduz/Las 2 Orillas

Em Caquetá, os movimentos sociais da região, representados pela União de Organização Indígenas e Campesinos de San Vicente del Caguán (UNIOS) se posicionou terminantemente contra novos poços de petróleo. No momento, a Emerald Energy é a única empresa retirando petróleo, mas a estatal EcoPetrol firmou em 2013 um acordo para obter 50% dos contratos na região e acelerar a prospecção para abrir novas zonas de produção.

Anibal Morante Rincón, tesoureiro do Comitê Municipal de Pecuaristas, entidade que participa da UNIOS, afirma que a principal preocupação se refere aos impactos sobre as fontes de água. A prospecção poderia afetar nascentes que alimentam o rio Caguán. “Aqui vivemos de produção de gado e existe um potencial turístico. Nada disso será possível se não houver água”, diz. Orgulhoso, conta que Caquetá se tornou o principal polo leiteiro da Colômbia. “Semanalmente saem daqui 450 toneladas de queijo para todo o país.”

Os novos blocos em prospecção – Nogal e Manzano – estão localizados em um ecossistema amazônico conhecido como piedemonte, uma zona florestada que por estar já próxima às elevações dos Andes não é tão densa, mas se torna a fonte de água para as principais cidades de Caquetá. A empresa que trabalha junto à Emerald pretende prospectar um território de 70 mil hectares, usando explosivos em até 2 km de profundidade e gerando um risco de contaminação ou assoreamento.

Ángel Medina, presidente da UNIOS, reforça o argumento de que atrair a indústria do petróleo vai contra a vocação rural da economia de San Vicente . “Para nós, os dirigentes sociais, há muita incerteza. Enquanto em Havana se fala sobre a democratização da terra como parte do processo de paz, as políticas do governo vão em direção contrária ao promover mais conflito através do aumento da exploração de recursos naturais”.

Mapa

Abaixo os lotes petroleiros de Caquetá. Em destaque a cidade de San Vicente del Caguán e o local de exploração em Los Pozos pela Emerald, empresa que pertence à estatal chinesa Sinochen

Os tanques de armazenamento de petróleo em Los Pozos. Foto: Giovanny Vera/InfoAmazonia

Os tanques de armazenamento de petróleo em Los Pozos. Foto: Giovanny Vera/InfoAmazonia

Em Los Pozos, assim que deixamos o Centro Educativo onde ocorreram as negociações de paz há 12 anos, fomos visitar os poços Capela I e Capela II, explorados pela Emerald. Toda a infraestrutura de extração e armazenamento é protegida por um destacamento do Exército colombiano. Quando nos aproximamos dos portões que isolavam os tanques, fomos alertados por seguranças de que não deveríamos estacionar ou tirar fotos. Ainda assim registramos rapidamente a entrada e saída de caminhões-tanque e algumas imagens dos poços através das grades.

No percurso de volta a San Vicente, as mesmas barreiras militares, pelas quais havíamos passado sem ser parados na ida, estavam fechadas. Os jovens soldados com fuzis nos fizeram parar e descer do jeep vermelho do Doc. Nos perguntaram o que fazíamos ali. O cabo no comando, quando percebeu que éramos estrangeiros e jornalistas, recolheu nossos passaportes e sacou seu telefone celular. Passou 10 minutos checando informações, tomando notas, sem que pudéssemos ouvi-lo.

Terminada a ligação, ele voltou com uma expressão grave, meneando a cabeça em reprimenda. “Vocês estrangeiros, jornalistas, não deveriam entrar aqui sem nos avisar. Não sabem que esse lugar está cheio de bandidos?” Era uma pergunta retórica. “Além disso, vocês estavam tirando fotos em Los Pozos. Há câmeras ali e por isso tivemos que pará-los”, acrescentou. Nossos cartões de memória já estavam nas meias ou escondidos entre os bancos do carro. Mas não houve busca.

Ouvimos ainda o sermão do cabo sobre os riscos de cruzar pela estrada com os “os bandidos” da FARC. De volta ao Suzuki vermelho cheio de bugigangas, o Doc e os jovens guias locais que nos acompanhavam não pareciam surpresos com a “dura” do Exército. Para eles, era mais um acontecimento em décadas de uma situação de guerra. É que agora, em vez de atacar a zona vermelha, o Exército defende a zona negra.

A visita a Los Pozos e San Vicente del Caguán foi feita pela equipe do projeto InfoAmazonia.org em parceria com as organizações colombianas Rede Juvenil Compaz e o Las 2 Orillas. Coloboraram nesta reportagem Giovanny Vera e Natalia Orduz.


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