Para salvar a Amazônia, cientista brasileiro declara guerra à ignorância
Thiago Medaglia
Pesquisador brasileiro apresenta compilação inédita de estudos e fala em unir esforços, mas o que você tem a ver com isso?
por Thiago Medaglia
Indignada, uma colega jornalista senta-se ao meu lado e comenta em voz baixa: “acabo de ver a repórter de uma emissora americana ir embora! Disse que não havia notícia aqui e partiu”. No auditório à nossa frente, pela primeira vez, um cientista brasileiro dedica-se a reunir em um relatório as conclusões de duzentos dos mais relevantes estudos e artigos científicos produzidos no país sobre o papel da floresta Amazônica no sistema climático.
Questões como a regulação das chuvas e a exportação de serviços ambientais para áreas vizinhas ou distantes da Amazônia foram analisadas. A conclusão: não basta reduzir a zero o desmatamento. Além de manter a floresta existente em pé (algo que já não acontece), é necessário confrontar o passivo do desmatamento acumulado (algo que nunca aconteceu). Em outras palavras, para permitir que a principal faixa tropical do planeta continue a exercer sua função de reguladora do clima é preciso cessar imediatamente com o corte de árvores e replantar parte da cobertura vegetal perdida.
A avaliação foi apresentada pelo autor da compilação, o pesquisador Antonio Nobre, do Centro de Ciências do Sistema Terrestre do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), em um encontro na zona oeste da cidade de São Paulo na quinta-feira, 30 de outubro. “A ciência é muito fragmentada”, diz Nobre, “por isso, decidimos compilar resultados de diversas áreas e agregá-los em um relatório feito para leigos”. O trabalho foi executado a pedido da Articulación Regional Amazónica (ARA), uma rede composta por organizações de vários países da região, entre eles o Brasil.
Talvez o fato de que as informações ali debatidas já haviam sido divulgadas anteriormente de maneira difusa tenha motivado o comentário da jornalista americana. Afinal, é comum associar a busca de notícias a fatos novos e há veículos de imprensa mais voltados ao hard news (dedicado à atualização contínua dos acontecimentos) do que outros – não há nada de errado nisso. No entanto, há cada vez mais espaço para uma mídia capaz de aprofundar as discussões. Bem rápido, as coisas estão mudando – no planeta e no jornalismo.
Mas vamos retomar o foco na explanação do cientista. Durante sua fala, Antonio Nobre destaca que, entre outras funções naturais, “a Amazônia cumpre o papel de ‘bomba d’água biótica’” – ou seja, o “oceano verde” da floresta tropical capta a umidade do oceano Atlântico, que é bombeada para o interior da América do Sul. Desprovida de sua cobertura original, a grande floresta já dá indícios de falhar no generoso papel de disseminadora da umidade.
A atual seca no Sudeste, segundo Nobre, está sendo avaliada por diversos pesquisadores e “embora seja cedo para afirmar, não podemos descartar a relação com o cenário ao Norte”. Uma das principais consequências da degradação florestal é a irregularidade na ocorrência de chuvas no próprio bioma e em outras zonas do continente. Por meio de rios aéreos de vapor, a Amazônia exporta umidade e ajuda a irrigar áreas de Sudeste, Centro-Oeste e Sul do Brasil, além de países como Bolívia, Paraguai e Argentina. “Sem os serviços da floresta, porções do continente que hoje são produtivas podem desenvolver um clima inóspito, quase desértico”. E complementa: “Se os paulistas querem garantir que a chuva retorne e permaneça, devem replantar a mata Atlântica e preservar a Amazônia”.
Uma nova percepção
A compilação multidisciplinar promovida por Nobre ajuda a evidenciar, também, nuances ainda pouco conhecidas da imensidão amazônica. Uma das peculiaridades apontadas é que a floresta, além de manter o ar úmido, favorece a formação de chuvas em ar limpo. “Até pouco tempo atrás não sabíamos disso, mas o fato é que as árvores emitem aromas a partir dos quais se formam sementes de condensação do vapor d’água”. Em contato com os núcleos das nuvens, esses aromas impulsionam as chuvas fartas (e eu só consigo pensar que há poesia de sobra na ciência).
Acontece que a competência em regular o clima se dá, principalmente, pela capacidade inata das árvores em transferir grandes volumes de água do solo para a atmosfera por meio da transpiração: na Amazônia, são 20 trilhões de litros de água transpirados ao dia (para se ter uma ideia, o rio Amazonas, o mais volumoso do mundo, despeja 17 trilhões de litros de água diariamente no oceano Atlântico). Só que o desmatamento coloca em risco todos esses atributos.
A redução drástica na transpiração, a modificação na dinâmica das nuvens e das chuvas e o prolongamento da estação seca nas zonas desmatadas são efeitos já previstos em modelos científicos e confirmados por observações. A floresta, formada há 400 milhões de anos, tem grande capacidade de resistir a cataclismos climáticos, entretanto, quando atingida por motosserras, tratores e incêndios artificiais, sua imunidade natural é quebrada. O gigante é vulnerável.
De acordo com cálculos do próprio Nobre, a ocupação da Amazônia já destruiu 42 milhões de árvores, ou seja, mais de 2.000 árvores por minuto – sem intervalos – nos últimos 40 anos.
“Precisamos de um esforço de guerra”, diz Antonio Nobre. E continua: “Durante a Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos interromperam a produção de carros populares para concentrar esforços na indústria bélica. É desse tipo de mobilização que precisamos para conter o desmatamento e suas consequências drásticas”.
E o que pressupõe o esforço conjunto sugerido por Nobre?
Entre outras ações: desmatamento zero já, a abolição de fogo, fumaça e fuligem (veja no mapa ao final do texto) e uma guerra contra a ignorância. Eis a parte mais difícil: de que maneira mobilizar a sociedade para um posicionamento firme contra o desmatamento?
Para alguns cientistas, o momento que vivemos hoje representa sistemas em colisão. Os sistemas humanos de infraestrutura (construção, energia, transporte, indústria e comércio) agridem a todo instante o funcionamento de sistemas naturais como os ciclos de nitrogênio e do carbono, a dispersão da umidade, a ocorrência ou não de precipitações e outros.
Há quem aposte que a tecnologia pode evitar o colapso ambiental e salvar a humanidade de seus próprios danos aos sistemas naturais. O grande problema é que as forças econômicas em jogo não favorecem revoluções tecnológicas a longo prazo. A lógica do crescimento econômico não poupa os recursos do planeta. A natureza pode minguar e milhões de vidas humanas podem ser perdidas, mas as pessoas resistem em modificar seus hábitos. A pauta ambiental, por exemplo, não foi tema em nenhum dos recentes debates políticos entre os candidatos à presidência do Brasil. Por que?
Para além do discurso de alienação política ou da falta de sintonia perceptiva, outro pesquisador, o psicólogo americano Daniel Goleman, aponta uma dificuldade, digamos, evolutiva: o aparato de percepção do nosso cérebro tem um ajuste fino para sorrisos e expressões de irritação, bebês, trovoadas e rosnados de animais perigosos (focos que foram úteis à sobrevivência da espécie: diante de um risco eminente, por exemplo, nosso cérebro libera hormônios como a adrenalina e nos preparamos para bater ou correr).
Entretanto, Goleman afirma seu livro mais recente (Foco, Editora Objetiva), ''não temos qualquer radar neural para as ameaças ao sistema global que suporta a vida humana. São questões macro ou micro demais para que nós as percebamos diretamente'' – como o pó mágico das árvores que estimula as chuvas ou a colossal transpiração da Amazônia. ''Assim, quando confrontados com essas ameaças globais, nossos circuitos de atenção tendem a dar de ombros.''
O esforço de guerra, portanto, começa por superar em si uma maneira intrínseca de ver o mundo como um oásis de recursos inesgotáveis. É chegada a hora de conectar pontos menos evidentes à primeira vista e desenvolver um modelo de pensamento sistêmico, onde a complexidade dos eventos ao nosso redor é levada em conta.
Do contrário, incorremos no risco de não enxergar a notícia ou de agir como um pecuarista mencionado pelo jornalista André Trigueiro nas redes sociais no último fim-de-semana: o homem culpava a seca pela morte de 800 cabeças de gado – atrás dele, uma paisagem de morros desmatados para virar pasto.